sábado, 7 de julho de 2007

leituras WALTER VASCONCELOS




Há algo nos desenhistas que também editam. Não que sejam melhores ou superiores, mas existe algo na cabeça deles que faz com que eles desenhem sabendo que cada traço pode ser muitos traços, dependendo do contexto em que ele se apresente. Assim nada tem um sentido muito fixo e tudo pode ser mudado de uma hora para outra. Claro que essa armação não é muito científica e é possível encontrar exemplos que contradigam isso até mesmo nesta revista. Mas o Walter serve de exemplo para mostrar como cada cabeça funciona de um jeito diferente. E como nossos hábitos se misturam com nossas intenções.

Normalmente um ilustrador sabe lidar com o contexto onde seu desenho vai ser apresentado e tem como coordenadas de um trabalho tudo que se refere a este espaço que lhe foi destinado: método de impressão, formato, a tipografia que o circunda e o uso da malha da página. Isso não é novidade e não é uma invenção deste desenhista editor, faz parte deste ofício. Mas um ilustrador normalmente se desliga dessas considerações uma vez definidos estes dados e fazem seu serviço como se estivessem escrevendo um texto: começo, meio e ponto final. Já esta outra categoria de desenhistas que o empirismo de minha pesquisa acabou de criar parece que está sempre desenhando com um olho no desenho e outro na História: uma carga de experiências passadas e futuras seguram a mão deste desenhista e o enchem de humildade. Neste sentido é até uma desvantagem que este desenhista vai ter que vencer de alguma maneira.



O Walter faz colagens mesmo quando não traz elementos externos - fotos, textos, clichês - para dentro do seu desenho. Faz colagens com seus próprios desenhos: traços rápidos, cuidados, descuidados, ásperos ou macios, curvas perfeitas ou retas imperfeitas tem a convivência forçada pela tesoura e cola e pelo olho controlador do dono. Olho este que pode vislumbrar milhões de soluções possíveis e deixar pistas destas soluções mesmo no serviço acabado. É como se as lâminas transparentes por onde se distribuem as partes do seu trabalho estivessem sempre prontas a se rearranjar.

Por outro lado, o desenho que o Walter nos apresenta não tem a fragilidade e a incerteza que o parágrafo anterior pode sugerir. Como bom editor ele sabe que deve criar um bom contexto onde estas idéias possam vingar. Assim, há sempre uma estrutura, às vezes mais outras vezes menos evidente, que serve de cama para essa farra e que vai facilitar nossa compreensão. Muitas vezes a cor e texturas de fundo vão fazer esse papel, outras vezes há uma malha por onde os traços se espalham.

Essa lógica se aplica tanto às ilustações como um todo quanto aos elementos isolados. Cada desenho do Walter parece uma colagem: olhos e narizes de universos distintos convivem numa cabeça cujo pescoço a liga a um novo universo. Estamos sendo constantemente apresentados a um diálogo entre formas que vai desde um pequeno detalhe até toda a superfície manchada, perfurada, riscada e tesourada da ilustração.

A sensação que temos é que essa intenção é infecciosa e vai se expandir além dos limites dos desenhos. Com isso conta também a parte editor deste ilustrador. Ele espera que o contexto possa conter o desenho. Apesar de cada desenho ter sua vida própria ele nasceu para o papel e a vida gráfica, o branco e o preto das letras. Só um contexto gráfico bem definido e estruturado pode segurar esses desenhos e deixar que eles respirem e não sejam afogados em sua própria afobação. Não há dúvida de que o Walter considera cada desenho um bicho vivo.



Uma analogia com o Dr. Frankenstein poderia ser tentada mas a afronta a criação divina gerada pelo racionalismo do pobre cientista alemão não tem nada a ver com a intenção deste quase carioca. Ele está mais para um Adão nomeando e renomeando as criações no paraíso. Ele quer mais dizer que o mundo humano é assim, desigual, fracionado e incompleto, e que mesmo assim ele existe. E sobrevive as custas da convivência dos opostos e da constante reelaboração de suas associações.

Ninguém precisa ser desenhista nem editor pra chegar a essas mesmas conclusões, mas o que o começo deste texto intui é que nós ocupamos apenas um lugar no espaço e que o caminho mais curto entre os pontos A e B nem sempre é a linha reta mas é aquele que nós vamos construindo com nossa curiosidade, aptidão e capacidade. O caminho do Walter se parece com esses rabiscos que ele tanto adora e alimenta até que possam andar sozinhos por aí: parecem divagações mas tem direção certa. E o Walter caminha assim: com um olho no fim e outro no começo.

Fabio Zimbres (Porto Alegre, maio de 2006)
publicado originalmente na revista Gráfica nº59

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