terça-feira, 11 de setembro de 2007

leituras O CHARGISTA PERPLEXO E A ARTE DA GUERRA

Seis anos depois do 11/9,
vale reler artigo de Spacca

A charge, como o nome indica, tende a ser agressiva, ao contrário da crônica, que se caracteriza por uma prosa amena (por que será que a crônica tem esse nome? só porque retrata os tempos, o cotidiano? e se os tempos provocam uma crônica contundente, ela deixa de ser crônica para tornar-se aguda?).

A quase totalidade dos chargistas americanos, como era de se esperar, produziu imagens com vigoroso sentimento bélico, retratando a nação ultrajada e ofendida. No dia seguinte ao ataque terrorista aos EUA, segundo a amostra reunida no site Daryl Cagle's Professional Cartoonists Index*, das 50 charges que vi pelo menos umas 30 mostravam a Estátua da Liberdade chorando. Retratavam ao mesmo tempo a comoção ante o terror da destruição e o sentimento de ultraje, de indignação moral equivalente a uma bofetada em público, em escala mundial.

Em outro desenho, os "pais da nação" choravam – Washington, Jefferson, Ted Roosevelt e Lincoln. Comparações (indevidas) com Pearl Harbour. A palavra "infâmia" constava de diversos desenhos. Poucos eram, definitivamente, charges. Sou obrigado a considerá-los charge por causa de seu amplo uso como tal, mas à maioria falta humor ou pelo menos uma "sacada", uma ligação inesperada entre duas idéias que ilumina o leitor com o prazer de uma descoberta ou revelação.

Em uma delas, somente, vemos a Estátua chorando pelo efeito de uma fumaça que sai da tocha; e na tocha está um pequeno terrorista segurando uma bomba, de cujo pavio sai a fumaça. Isto é uma charge. As outras são alegorias, propaganda política.

Um cartunista americano de Sacramento está sendo duramente repreendido por ter criado esta imagem:


Charge de Rex Babin, publicada no Sacramento Bee.

Rex Babin superpôs, às cenas terríveis de Manhattan em chamas, a famosa imagem da menina Kim Phuc e outras crianças fugindo do bombardeio de napalm no Vietnã.

Veteranos de guerra enfurecidos lembram que essa cena antológica registrava, na verdade, um bombardeio feito por um avião sul-vietnamita, fato confirmado pelo fotógrafo Nick Ut e pelo correspondente da UPI Christopher Wain. Mas ela ficou guardada na memória coletiva como símbolo do conflito e principalmente do caráter da intervenção americana. A charge de Babin usa este ícone para reverter os sentimentos patrióticos, sugerindo que os EUA estão colhendo em seu território os frutos de seu expansionismo.

Segundo seu "teor bélico", podemos classificar as charges em três tipos:

Charge de guerra ou propaganda
Aqui o chargista expressa uma idéia simples ou um sentimento na forma de uma alegoria. A associação de idéias reforça uma ideologia ou visão de mundo. São desta espécie as charges patrióticas como as da Estátua da Liberdade chorando ou ultrajada (os veteranos do Vietnã criticaram inclusive as que mostram a Liberdade prostrada; para eles os desenhistas deveriam mostrá-la forte, em posição de combate), e também as charges palestinas representando Bush como um demônio, o capitalista ou "judeu internacional" sugando o sangue do proletário etc. Há uma tendência em usar um desenho forte e pesado, com recursos de desenho clássico ("realismo socialista") ou expressionista. São idéias simples, maniqueístas e freqüentemente sem humor.

Charge de guerrilha
Neste tipo, o chargista procura subverter uma visão dominante por meio da ironia. Ele faz a representação de uma idéia, atitude ou opinião para, em seguida, desmontá-la pelo absurdo ou pelo ridículo. A charge de Rex Babin é um ótimo exemplo.Com certeza ela é mais inteligente do que a charge de guerra, mas a diferença está principalmente na estratégia: o objetivo também pode ser propagandístico, na medida em que busca, além de fazer rir, convencer. O alvo não é necessariamente o conservadorismo das "classes dominantes"; o humor de guerrilha pode investir contra a opinião pública, contra dogmas da esquerda, fanatismos religiosos etc.

Charge anarquista ou "do caos"
Aqui a intenção declarada é "ver o circo pegar fogo". O chargista defende seu sagrado direito de zombar de tudo, de não levar nada a sério, a não ser sua própria liberdade de expressão, cruel e irrestrita. Ele parece não se comover diante de nada. Bom exemplo é a charge de Arionauro , em que uma mãe tenta fazer seu filho tomar uma colherada de mingau dizendo "olha o aviãozinho"... enquanto o bebê olha aterrorizado o Boeing pela janela. Ou o cartum que circulou na internet sobre o "terrorista português", que passou no meio das duas torres, deixando as asas para trás e caindo no mar, gritando "Ai, Jesus". Sem compromisso com nada, o humorista prefere perder o leitor eventualmente ofendido do que a piada. Ele agride ocasionalmente, sem intenção real de ferir quem foi alvo de sua charge; exige que o ofendido não leve a sério e ria também.

Henfil conseguia jogar nas três posições: vide sua campanha pró-Diretas com Teotônio Vilela (charge de propaganda), o humor de guerrilha com a Turma do Zeferino e o humor anarquista com o Fradim (às vezes engajado contra as hipocrisias, às vezes simplesmente irracional).

Na cobertura chargística nacional do Terror nos EUA, Ique desenhou uma fumaça em forma de caveira. Uma alegoria. Aroeira e Paulo Caruso desenharam Bush como a Estátua da Liberdade; no cartum de Aroeira, a explosão abre uma fenda na cabeça de Bush, indicando talvez um abalo na sua administração (previsão equivocada, a popularidade do presidente americano disparou).

Harmonia e compreensão

Glauco, na Folha de S. Paulo, usou um recurso clássico da "charge de guerrilha": pegar qualquer assunto e aproveitar para falar mal de FHC. Na charge de 12/9, porém, foi muito feliz: desenhou o presidente no telhado com uma carabina, enquanto uma voz (Dona Ruth, certamente) sai do palácio: "Fernando, vem dormir!". Esta charge genial refere-se tanto ao documento em que FHC oferece o sangue brasileiro a Bush quanto retrata nossa própria pretensão e insignificância diante dos acontecimentos.

Estes três posicionamentos bélicos podem apontar um quarto caminho para o chargista, que expresso assim: será possível uma charge não-agressiva? Poderá uma charge ser expressiva, contundente, forte, sem que precise atacar alguém, defender uma facção ou distribuir farpas indiscriminadas?

Sim, isto é possível, e talvez aponte para uma superação da charge como conhecemos.


Charge de Angeli, Folha de São Paulo, publicada em 13/9/2001

Fazendo uma comparação da charge com as artes marciais japonesas, o criador do aikidô, O-Sensei Morihei Ueshiba (1883-1969), foi praticante de diversas lutas até que desenvolveu um caminho que une arte marcial, pedagogia e iluminação. O aikidô conserva o espírito de combate dos samurais, mas busca a superação do desejo de competir (não há competição no aikidô, apenas demonstração de técnicas), a harmonia entre quem ataca e quem defende (quem defende sempre "ganha", porque entra em harmonia com o movimento de quem ataca e o domina), a compreensão.

Atacar agressivamente não leva à compreensão, pois já se inicia com a certeza de que se está com a razão. É preciso unir o ataque ao desejo de conhecer.

No caso da charge, não se trata de simplesmente atacar os EUA ou os terroristas ou, pior, os árabes ou a religião islâmica. É uma história cheia de nuances, e a charge ainda é um instrumento tosco, simplificador. Atirar para todos os lados é a saída mais fácil para não ser injusto, mas ainda assim o chargista compactua com uma insensibilidade cínica pós-moderna.

O chargista Angeli, na Folha do dia 13/9, desenhou a si mesmo simplesmente atônito em sua prancheta, o estúdio em ruínas como as torres gêmeas, e o título "No comments".

Pode parecer apenas mais um "Angeli em crise". E é – somos todos nós em crise. Precisamos desse silêncio sem comentários para fazer uma reflexão. Virão charges críticas a Bush, aos militares, aos extremistas, à opinião pública etc; mas agora o chargista está perplexo. Ele não reagiu, não julgou, não contra-atacou... Está fazendo a coisa mais sensata no momento, que é aguardar. Aguardemos. (Spacca)

Artigo de Spacca publicado originalmente no Observatório da Imprensa, uma semana após o 11/9. Reproduzido pelo Tinta China com autorização expressa do autor.

* A galeria que o autor cita no texto não existe mais mas o mesmo site apresenta uma seleção das melhores charges sobre o 9/11 aqui.

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